Há
cinquenta anos um episódio lamentável mergulhou o Brasil no seu maior
retrocesso político, social, e a partir de certa altura, econômico. O golpe
civil-militar que vaporizou as nossas instituições republicanas em abril de
1964 ensejou uma ditadura militar que endereçava a condução dos assuntos de
Estado à uma matilha de tecnocratas com o selo de aprovação antissocialista em
benefício de uma minoria milionária interessada sempre no pior que o
capitalismo tem a oferecer ao povo. A nossa ditadura militar teve algumas
singularidades fascinantes e vergonhosas do ponto de vista institucional: tanto
o golpe que a chocou do ovo da serpente como o regime que ela conduziu contaram
com a ampla presença — e participação — de tudo que a sociedade civil nutria de
menos democrático; ao mesmo tempo foram poucos os ditadores que durante o
regime gozaram de poder absoluto sobre as forças nascidas da mesma Caixa de
Pandora que lhes colocara no poder.
Os cinco generais-presidentes que encabeçaram
o condomínio de interesses macabros por 21 anos só puderam manusear o cetro
real na medida em que se movimentavam a favor dos mecanismos de sustentação do
golpe: a domesticação da sociedade civil, a abordagem antipopular dos problemas
nacionais, o anticomunismo extremista como instrumento de controle cultural, a
militarização da crise social que avassala o País há séculos, e inversão dos
papéis institucionais do Estado. Esses mecanismos se combinaram de acordo com a
convergência de interesses conservadores e reacionários que produziram o consórcio
do golpe. Domesticar a sociedade civil atendia à ideologia autoritária daqueles
militares que esperavam uma paz social decretada de cima pra baixo para a
correta administração do País, e também do empresariado que, num audacioso
golpe para vencer a luta de classes, preferia ver militares usurpando o Direito
para neutralizar agitadores sociais e trabalhadores conscientes do que aceitar
a participação dos mesmos na condução dos destinos políticos.
A abordagem antipopular dos problemas nacionais brotava do
preconceito de décadas que os militares brasileiros nutriam contra o comunismo,
identificado como gatilho de qualquer proposta de poder popular, e também da
tendência essencialmente antidemocrática de um empresariado que pode alegar
gostar de democracia num banquete de sócios, mas sabe em seu âmago que a
maneira mais fácil de obter lucros é prestando o mínimo de contas possível à
população. E o Brasil, nessa ótica, é pouco mais do que uma máquina de fazer
lucros.
O anticomunismo extremista como instrumento de controle social
fazia as delícias de uma Igreja que associava comunismo com a subversão dos
valores da família cristã, de uma corporação convencida de que qualquer ideia
de vanguarda é produto do movimento comunista internacional, e de uma classe
média moralista sem coragem de se opor às elites mais soberbas, porém, disposta
a se consolar com o patético papel de vigilante dos bons costumes e de guarda
pretoriana da mais retrógrada das morais cívicas. Feito do comunismo um rótulo
capaz de abarcar tudo de culturalmente perigoso, verdadeiros tarados foram
elevados às funções mais decisivas de produção intelectual e artística no País,
sob o pretexto de que a voracidade destes era uma arma indispensável no combate
à subversão.
A militarização da crise social que avassala o Brasil há séculos
saciava aquela mínima porcentagem de milionários brasileiros temerosos da
possibilidade da ralé se apropriar de qualquer medida de fatia do volumoso bolo
da riqueza nacional, dos empresários estrangeiros localizados no Brasil que
monopolizavam setores da economia, receosos de qualquer mudança de regras capaz
de beneficiar a democracia em seu prejuízo, e daquela ascendente classe média
que sonhava com a possibilidade de auxiliar as aves de rapina do capital
estrangeiro a fincar suas bandeirinhas sobre nossa economia em troca de algumas
migalhas. Nessa correlação de forças, botar o Exército para desmobilizar o povo
faminto e explorado sairia sempre mais barato que negociar com o mais pelego
dos representantes das classes trabalhadoras.
A inversão dos papéis institucionais do Estado ia ao encontro das
preocupações do Departamento de Estado norte-americano, dos pudores da classe
média anticomunista e das necessidades práticas dos lobistas do poder na nova
ordem. Os verdadeiros motivos de combate ao comunismo sempre foram egoístas
para a coalizão conservadora, mas para ampliar o apelo de manobra tão delicada
era necessário lançar mão da retórica pró-democrática que compensava em
histeria o que lhe faltava em propriedade e profundidade. Assim, para conservar
a fachada de regime democrático, o Congresso brasileiro não foi fechado, a não
ser em ocasiões específicas — mas foi plenamente esvaziado de suas funções
públicas (praticamente incentivado, portanto, a inventar funções privadas).
O
multipartidarismo não deu lugar ao fascismo monopartidário, mas a um
bipartidarismo cínico que reservava ao situacionista os louros da vitória e ao
oposicionista os ônus das crises. Isso maquiou a real situação de
criminalização da diversidade política da nação e facilitou o desencanto
popular com os instrumentos partidários. O Judiciário manteve algumas
prerrogativas de independência, mas elas foram tão vagas e tão inúteis no
destino da sociedade que esse poder acabou se encastelando cada vez mais,
tornando o acesso à Justiça no Brasil um dos mais bloqueados do mundo
industrial. Tudo era permitido à sociedade civil e aos poderes da República
contanto que beneficiasse os que estavam no poder, e tão logo que eles se
mostrassem incômodos, como na vitória contra a cassação de Márcio Moreira Alves
em 1968, ou na espetacular vitória do MDB nas eleições de 1974, em breve eram
esvaziados de sentido, importância e possibilidades.
A ditadura aniquilou tantas instituições que
não conseguiu respeitar nem as que ela própria criou — isso ficou visível em
1969, quando o próprio processo de escolha do Presidente que o regime criou foi
atropelado e a própria Constituição criada havia menos de dois anos foi quase
inteiramente revogada. Essa sórdida combinação de interesses diabólicos com
suas aspirações particulares e que necessitava de uma horrível combinação
química para atingir seus objetivos se explica pela própria formulação do
golpe. Ele nasceu de várias cabeças e foi desempenhado a várias mãos. O IPES,
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, teve a função de reunir os militares
golpistas que desde 1954 perseguiam o pálido centro-esquerdismo de João Goulart
com o empresariado que não poderia se lançar sozinho contra a República num
golpe de mão. A intenção do IPES era assumir onde o IBAD havia parado. O
Instituto Brasileiro de Ação Democrática fora criado em 1959 para arrecadar
fundos estrangeiros e nacionais — mas sempre clandestinos — para derrotar a
esquerda nas urnas, mas o seu sucesso limitado em 1962 levou seus sócios a
buscarem vitórias no tapetão, reunindo empresários da mídia, golpistas
profissionais, agentes estrangeiros, e militares reacionários. O fim de março e
começo de abril de 1964 registrou o maior nível de unidade da direita
brasileira em qualquer ponto em sua História — talvez comparável apenas a
outubro e novembro de 1989. O resultado foi particularmente triunfante porque
não só não se registrou unidade similar das esquerdas, como elas estavam particularmente
desagregadas em virtude dos 464 anos de relativa semiclandestinidade que lhe
espremeram o bom senso e a capacidade para trabalhos coletivos.
A ditadura só foi embora após reverter a esquerda a estágio
similar de precariedade política e até mesmo teórica. Não conquistamos muita
coisa desde então, a não ser a possibilidade de superarmos essas limitações
históricas com um acúmulo considerável de experiência que pode nos levar a um
estágio mais avançado na luta de classes, conquanto nos mantivermos sagazes e
maduros, a fim de que nossa diversidade não se degenere em divisionismo por
conta das nossas inseguranças e pequenas questões particulares.
Mas, mesmo a ditadura em si tendo um fim, até hoje permanecem
muitos resquícios da mesma na política e no estado brasileiro. Além disso,
paira uma sombra – ou uma censura – sob o período nos capítulos da história
brasileira, pois não há condenação dos criminosos da época e mesmo a verdade
sobre o período ainda é revelada a conta-gotas, com a comissão da verdade só
tendo sido instituída recentemente e ainda com muitas limitações.
Ainda há muita luta a se fazer para combater as conseqüências e
resquícios da ditadura militar, para eliminar este fantasma ainda bastante
presente que até hoje cega e censura a consciência da classe trabalhadora.
É preciso abrir todos os arquivos e desnudar o que ocorreu naquele
período. Porém, é preciso também punir exemplarmente todos os políticos,
policiais, militares, empresários e civis que contribuíram com o regime e seus
crimes.
A polícia militarizada, autoritária, racista, machista,
homofóbica, repressora e assassina que temos hoje é também uma herança maldita
deste período. A luta que cresce hoje pela desmilitarização da polícia é de
extrema importância e tem o apoio do Coletivo Construção.
É essencial reivindicarmos a democratização da mídia e quebrar
esse modelo oligopolizados que nasce do monopólio da globo, que foi criada por
investimento de uma empresa americana visando edificar um aparelho de dominação
ideológica e apoio ao governo anticomunista que se instalava. Neste sentido é
crucial que defendamos a luta pela democratização da mídia, quebrando com a
dominação ideológica imposta pela burguesia e dando aos trabalhadores acesso
aos veículos de comunicação de massa.