O
Centro Universitário da Cidade (UniverCidade) e a Universidade Gama Filho,
instituições que enfrentam a possibilidade de descredenciamento pelo Ministério
da Educação, pertencem a uma geração mais recente de instituições do ensino
superior brasileiro. Até os anos cinquenta e sessenta, o Brasil tinha
pouquíssimas universidades particulares, e quase todas eram religiosas — a maioria
vinculada à Igreja Católica. O País tinha uma ou outra faculdade particular,
modesta, monodisciplinar, caso da Faculdade de Ciências Jurídicas do Estado do
Rio de Janeiro, fundada em 1951 por Luiz Felippe Maigre de Oliveira Ferreira da
Gama, conhecido por Gama Filho. O ensino superior atendia a uma fatia minúscula
da sociedade brasileira, e apenas parte da elite desfrutava desse privilégio.
Quando Gama Filho nasceu em 1906, o país possuía
apenas algumas faculdades públicas, quase todas de Direito. Quando ele comprou
o Ginásio Piedade em 1939 — ano em que nascia Ronald Guimarães Levinsohn,
fundador da UniverCidade — o Brasil de Vargas já havia construído suas
primeiras universidades federais e estaduais, e o Centro Dom Vital,
representante da intelectualidade da Igreja Católica, administrava a
recém-fundada Universidade Santa Úrsula.
Um ano depois de o Brasil entrar na Segunda Guerra
Mundial a favor dos Aliados, Gama Filho transformava seu ginásio em Colégio
Piedade, e após o fim da guerra, com a derrota do nazi-fascismo, o novo regime
de relações internacionais começava uma fase de promulgação de numerosos
tratados em defesa dos Direitos Humanos. Em 1948, um ano após Gama Filho se
eleger vereador pelo Distrito Federal, pelo Partido Republicano (PR), a ONU
aprovava a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e seus signatários se
comprometiam, no papel, a respeitar e observar os direitos reconhecidos em seu
texto, que incluíam o acesso universal ao ensino. A longa luta pela
universalização do ensino brasileiro havia conquistado um amparo legal.
Mas uma outra luta, de caráter
privado, contava com muito mais boa vontade do poder público. A Constituição de
1946 previa a criação de uma Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, mas
apesar da pressão dos movimentos sociais, o Congresso enterrou o projeto numa
luta entre os defensores do ensino universal gratuito e aqueles que queriam
isenção fiscal do governo para incentivar a expansão do ensino particular. Gama
Filho, eleito deputado federal em 1950 pelo PSD (Partido Social Democrático
1945-1965), se alinhava ao último grupo, e em 1951 transformou seu Colégio
Piedade na Faculdade de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro. Esse grupo,
chamado de “liberalista”, acabou prevalecendo graças ao substitutivo do
deputado carioca Carlos Lacerda, da UDN e um trabalho articulado dos
empresários do ensino privado.
Aprovada em 1961, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional permitia que empresários investissem no
ensino particular com uma quantidade colossal de deduções no imposto. A
indústria do ensino se tornou uma das mais lucrativas do Brasil, e a leniência
dos Ministros da Educação e Cultura que surgiram a partir de 1964 facilitou a
proliferação de centenas de escolas e dezenas de instituições do ensino
superior Brasil afora. As gestões de Flávio Suplicy, Pedro Aleixo, Raimundo
Moniz de Aragão, Tarso Dutra, Jarbas Passarinho e Ney Braga à frente do MEC
representaram a expansão exponencial do sistema privado de ensino superior, ao
mesmo tempo em que o currículo das universidades públicas era pulverizado e
seus investimentos caíam.
O Brasil passou por uma política
educacional convulsiva na ditadura militar-oligárquica. O ministro Suplicy
arremessou as entidades estudantis à clandestinidade e interveio nas
administrações de dezenas e dezenas de universidades, cassando a titularidade
de acadêmicos capazes e substituindo-os por oportunistas venais de baixíssima
qualificação intelectual. O ministro Tarso Dutra impôs o Acordo MEC-USAID e
arrebentou a formação humanística dos cursos superiores, mantendo-os reféns dos
humores do mercado de trabalho, assinando o Decreto-Lei 477 para radicalizar a
aplicação do AI-5 no sistema universitário.
O ministro Jarbas Passarinho — recém-saído de uma
gestão no Ministério do Trabalho que erradicou na marra o ativismo sindical — presidiu
ao mesmo tempo a maior multiplicação de universidades particulares do Brasil e
os maiores cortes no orçamento do ensino superior. Mas os tubarões do ensino
superior não eram os únicos empresários que lucravam cosmicamente com a boa-fé
de seus clientes que ansiavam por uma melhoria de status. Os anos 70 também
testemunharam a expansão de empresas de crédito, como a sinistra Delfin, que
com 4.000.000 de clientes bateu recordes invejáveis no mercado.
O proprietário da Delfin, o gaúcho Ronald Guimarães
Levinsohn, fez alguma coisa de muito nebulosa com o dinheiro da empresa porque
de tempos em tempos ele precisou ser socorrido com empréstimos generosos do
Banco Nacional de Habitação. Em 1979 — um ano após a morte de Gama Filho — a
dívida da Delfin com o BNH já chegava a 60 milhões de cruzeiros, e Levinsohn,
admirador confesso do Ministro-Chefe do Gabinete Civil Golbery do Couto e Silva
(a quem certa vez dedicou um notável busto), obteve do governo um acordo
vantajoso para saldar as dívidas com a venda de terrenos que valiam no máximo
nove milhões de cruzeiros. Levinsohn já havia sido homenageado com a Medalha do
Pacificador, honraria quase privativa do Exército brasileiro, por seus
“serviços” à Pátria, mas em 1982, quando o jornalista João Carlos de Assis
denunciou suas maracutaias em esmerada reportagem, o governo concedeu ao
empresário uma dádiva ainda maior: um convênio com a Poupex, a caderneta de
poupança do Exército. O grupo Delfin sofreu uma generosa intervenção do Banco
Central e foi à falência mesmo assim, prejudicando milhões de clientes. Mas uma
CPI para investigar o caso acabou em pioneira pizza, e o pacificador Levinsohn
manteve sua fortuna para investir no ensino superior privado. Descobriu que
cobrando mensalidades altíssimas de uma faixa social ansiosa por um diploma
seria tão lucrativo quanto engabelar clientes da Delfin, visto que as
exigências do MEC para manter uma faculdade eram mínimas, e os encargos
tributários menores ainda.
O pacificador Levinsohn já era um abutre do agronegócio, tendo comparado a expansão dos seus latifúndios no oeste baiano favoravelmente ao faroeste americano, visto que lá estava repleto de “ferozes índios” e no Brasil só era repleto somente de “grileiros e bandidos”. Mas igualmente repleto de grileiros e bandidos estava o MEC, que na Era Sarney foi dirigido pelos caciques do PFL—curiosamente todos ex-governadores biônicos da Era Geisel: Marco Maciel, da dinastia pernambucana dos Rego Maciel, Jorge Bornhausen (presidente da Federação Brasileira de Bancos), da dinastia catarinense Konder Bornhausen, e Hugo Napoleão, da dinastia piauiense Rêgo. Animados com os resultados colhidos pelo ensino superior privado desde antes da gestão de Ney Braga (ele próprio cacique supremo do PFL paranaense), os ministros do Sarney planejaram o sucateamento das universidades públicas com o objetivo de privatizar suas estruturas para os mercadores de diplomas.
Levinsohn, como Gama Filho antes dele, percebeu a
oportunidade de ouro, e estando “envolvido com educação” desde os anos 70,
autorizou a expansão agressiva da “Faculdade da Lagoa”, a partir de 1990.
Levinsohn, os herdeiros de Gama Filho, e mais uma penca de empresários do
diploma lutaram obstinadamente para que a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional flexibilizasse a criação de entidades privadas do ensino
superior. O texto original de Darcy Ribeiro foi alterado ao sabor desses
senhores e a partir de 1996 instituiu-se a figura do “centro universitário”—uma
espécie de universidade sem pesquisa nem extensão. O que para Levinsohn é até
natural, já que, para ele, esperar que uma universidade faça pesquisa ALÉM de
ensinar é querer que “um submarino voe”. Foi pensando assim que a UniverCidade,
fundada em 1998, estourou a marca dos trinta mil alunos matriculados.
Os anos 90 foram de choques entre
governos a serviço desse modelo privatizante de ensino superior e movimentos de
esquerda entre os estudantes, professores, pedagogos e funcionários na oposição
a um projeto que retrocede imensamente na já combalida luta por educação
universal, laica, gratuita e de qualidade. Com alguns remanescentes dessa luta
ainda orbitando o PT e alguns de seus partidos aliados, o governo Lula precisou
conjurar verdadeiras imagens para se diferenciar da sanha privatista dos anos
FHC. Contrariando o sentimento prevalente na esquerda de que a Educação, como
serviço público, exige dos seus concessionários privados a mais rígida
obediência a determinações governamentais, o presidente Lula passou a
consultar-se com a mesma classe empresarial que fez fortuna nos anos FHC para
propor reformas universitárias. Nem sempre o consenso foi possível, mas somente
após décadas de baixa qualidade no ensino superior privado é que vemos o MEC
assumir algum tipo de postura antagônica aos interesses das mantenedoras da
UniverCidade e da Universidade Gama Filho. Isso porque essas instituições
fracassaram abissalmente nas mais tépidas avaliações conduzidas pelo Ministério
para calcular a eficiência curricular das universidades nacionais — e
fracassaram consistentemente.
No caso da UniverCidade, a presença nada auspiciosa
de Ronald Guimarães Levinsohn na sua direção já havia motivado inúmeros pedidos
de CPI para o ensino superior privado, mas elas foram prontamente abortadas
pela maioria governista nas casa legislativas. No entanto, a Assembléia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em meio às formidáveis convulsões
sociais que varreram todos os estados brasileiros em 2013, acabou frangando uma
bola chutada pelo deputado estadual Robson Leite, remanescente da esquerda da
esquerda do PT. O ex-professor do Pré-Vestibular para Negros e Carentes, sempre
sensível às denúncias de seus ex-alunos sobre as condições pedagógicas
lastimáveis das universidades privadas a que pertencem, assumiu a luta por uma
CPI na ALERJ que já havia sido tentada por outros parlamentares, como Paulo
Ramos. A fim de não permitir que seu gol seja anulado por um juiz ladrão, o
deputado atendeu às reinvindicações variadas do movimento estudantil e
pressionou seus conhecidos no governo Dilma a tomarem alguma iniciativa que
pudesse colocar seu partido no lado popular dessa luta.
Infelizmente, o PT é ambíguo o suficiente para
permitir um ponta-esquerda feito o Robson a tentar seus dribles, mas o seu time
parece disputar outro campeonato: pela Taça de pacificador do movimento
estudantil. Depois de um 2012 e 2013 repletos de greves estudantis e jovens
tomando as ruas, a despeito de todo o imobilismo da direção da União Nacional
dos Estudantes, o governo Dilma parece disposto ao tipo de saída para a crise
que o PT mais gosta: negociada. Os cursos foram descredenciados pelo MEC, mas a
devassa no ensino superior privado dificilmente sairá, até porque o governo
provavelmente não encara dores de cabeça piores do que as mantenedoras
pretendem provocar na Justiça. A menos que os estudantes, dotados da garra e da
obstinação que caracterizaram muitos de seus antecessores, se aliem às
associações de professores e de funcionários para uma saída radical para a crise,
o governo tende a obedecer à lei do mínimo esforço, indenizando os proprietários
se a Justiça decidir, apaziguando os estudantes com punhados de matrículas se
eles ameaçarem partir para a oposição, e enrolando os profissionais até que o
movimento dos trabalhadores perca fôlego. No final, é certo que o objetivo é
empurrar a milenar questão da importância do ensino superior com a barriga para
poupar o governo da chatice de encarar os mercadores de diploma de frente, sem
ter que chamuscar as credenciais esquerdáveis do PT, tão necessárias para se
distinguirem dos nefastos tucanos—sobretudo em ano eleitoral.
No final das contas, por mais
prejudicados que os estudantes de sintam, por mais abandonados que os
professores e funcionários da Gama Filho e da UniverCidade se encontrem, e por
mais exausta que a CPI fique para evitar uma pizza, quando uma remessa de
mozzarella já foi encomendada na Justiça, o grande derrotado dessa partida será
o projeto de um Brasil desenvolvido, progredido e com respeito aos Direitos
Humanos, rumo à justiça social. A defesa mais vazada nesse campeonato é a defesa
de um País livre, soberano, com oportunidades para todos e prioridades para os
desfavorecidos, conforme conceberam nossos grandes pedagogos e humanistas, como
Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Guerreiro Ramos, Paulo
Freire, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, e Moacyr Gadotti, entre
outros. É lógico que nem todos os brasileiros sofrerão com o atraso do nosso
País e o descaso de nossas instituições. Os sempre famintos Ronald Levinsohn e
os herdeiros de Gama Filho ficarão um pouco frustrados se alguém garfar um
pouquinho de suas sobremesas após o grande banquete dos cartórios
universitários, mas eles e outros trustes dos diplomas tenderão a sair desse
episódio com suas propriedades imensas plenamente conservadas — a menos que as
jornadas de junho se mantenham acesas e radicalizem o movimento estudantil num
rumo de independência política, ousadia ideológica, e firmeza programática em
torno da luta de classes contra os plutocratas que mantêm
esse País no atraso.