Por Priscila Manfrinati, estudante de História da USP, militante do CAHIS
USP, FEMEH e COLETIVO CONSTRUÇÃO.
Se, na data de
hoje, militares e saudosistas comemoram um golpe de estado criminoso, cujos
agentes assassinaram, torturaram e exilaram centenas de militantes no país,
para nós esse é um dia de memória e resistência. Memória porque a luta dos que
tombaram lutando por uma sociedade justa e igualitária é também a nossa luta, e
porque o legado dos nossos militantes perdidos contribui para a urgência das
nossas tarefas históricas. Resistência porque os resquícios do regime militar
brasileiro são sentidos até hoje nessa falsa democracia em que vivemos, onde
movimentos sociais são criminalizados, a polícia agride e mata, os meios de
comunicação são monopolizados.
Durante os anos
subsequentes à abertura democrática, o país viveu um profundo silêncio sobre o
período ditatorial por parte dos governos. Com a aplicação da Lei da Anistia,
torturadores e torturados foram igualados juridicamente, não houve conformação
de discurso oficial do Estado, os arquivos do DEOPS e demais aparelhos
burocráticos permaneceram lacrados. O pouco repercutido sobre o período se deve
às contribuições de sobreviventes, produções cinematográficas, obras literárias
e demais meios civis de circulação.
A reivindicação
do acesso aos arquivos da ditadura foi campanha permanente da FEMEH – Federação
do Movimento Estudantil de História – desde sua fundação em 1987 e significava,
de fundo, uma luta pelo direito à verdade. Houve um avanço na última década no
acesso aos arquivos, que vêm sendo gradativamente disponibilizados pelo país
afora e em 2012, a campanha mudou seu nome (e abrangência histórica e política)
para “Pela memória, verdade e justiça, contra a criminalização dos movimentos
sociais”.
No fim do
primeiro ano do governo Dilma foi criada a Comissão Nacional da Verdade. Esse
órgão, sem autonomia financeira e submetido ao gabinete da presidência, é
composto por membros escolhidos diretamente pela presidente e tem a função de
investigar os crimes cometidos pelo Estado entre 1946 e 1988, período que
compreende a ditadura civil-militar brasileira. Entendida por muitos como um
compromisso da presidenta com o seu passado militante e, mais além, com a pauta
dos direitos humanos no Brasil, a Comissão tem inúmeras problemáticas e deve
ser analisada dentro de um complexo jogo de interesses.
Um dos
objetivos principais do governo Lula no âmbito das relações internacionais foi
a conquista de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. No entanto, as
Cortes Interamericanas vetaram a participação brasileira no órgão.
Há mais de 20
anos depois do que chamamos de 'abertura democrática', a história da ditadura
civil-militar ainda está diluída no discurso de diversos setores da sociedade
que têm leituras divergentes sobre o período e o impacto do regime no Estado
democrático de direito. Ainda sem discurso oficial, o Estado brasileiro
precisaria revirar os esquecidos arquivos do período da ditadura e, por
exigência das Cortes, apresentar uma versão consolidada sobre o período perante
a sociedade. A criação da Comissão veio, então, no sentido de adequar o Estado
brasileiro à concepção de Estado imposta pelas Cortes, que possuem políticas
rígidas contra modelos totalitários de governo.
De caráter
estatal e não popular, a Comissão tem graves limitações. Sua composição é
alheia à militância histórica dos movimentos sociais em torno das causas dos
presos e torturados pelo regime: não aglutina, para além da formalidade, as
intervenções da população em torno desse assunto polêmico. Para além disso, tem
caráter explícito e declarado de “reconciliação nacional”. O projeto de lei de
sua criação foi formatado em comum acordo com os chefes das Forças Armadas e,
não só não pretende revisar a Lei da Anistia e punir os torturadores, como não tange
o caráter civil da ditadura militar, deixando imaculadas tantas empresas e
indústrias - relegando suas contribuições ativas ao regime militar ao
esquecimento.
“Pela memória,
verdade e justiça” - A Comissão abrange a memória de alguns, relativiza a verdade
e simplesmente se abstém da justiça. Tamanha diplomacia com os setores
militares abre margem para o fortalecimento e ameaça de insubordinação, tal
como já ocorrido no governo Lula. A articulação de um movimento de criação de
uma “comissão paralela” no Clube Naval sem medidas punitivas por parte do
Ministério da Defesa comprova uma docilidade perigosa do governo com as Forças
Armadas. E vai na contramão das reivindicações sociais em torno do assunto.
Esses limites
todos não são inerentes à condição institucional da Comissão. Órgãos à imagem e
semelhança da CNV foram criados em outros países sul-americanos e, como
ocorrido na Argentina e no Uruguai, chegaram a condenar à prisão perpétua
torturadores já bem idosos. Na semana passada, foram 12 as condenações
argentinas em processos sobre os crimes do regime. É extremamente simbólico
que, no mesmo país, a antiga ESMA – Escola Superior da Mecânica Armada –,
principal centro militar da repressão argentina, foi transformada em um enorme
complexo cultural dedicado à memória, enquanto a paulistana Rua Tutóia continua
a abrigar uma delegacia de polícia. A superficialidade das iniciativas
governistas nessas questões expõe até onde se dá o comprometimento do governo
Dilma com a causa histórica dos direitos humanos e os direitos democráticos no
Brasil.
Se, por um
lado, os governistas e os iludidos comemoram o ato de restituição simbólica dos
mandatos dos deputados e senadores cassados à época da ditadura e a mudança do
obituário de Herzog por outro ainda inadequado (visto que morte em decorrência
de tortura não é o mesmo que morte em decorrência de maus tratos), os
torturadores e colaboradores da ditadura permanecem livres e vivem normalmente.
A não intervenção nos conflitos no campo, a ação violenta da Marinha no
Quilombo Rio dos Macacos, as repressões aos trabalhadores em greve nas obras do
PAC e aos estudantes em mobilização nacional por melhores condições
universitárias, e a promulgação da Lei Geral da Copa mostram que o estado de
exceção não foi superado e não é exclusivo do passado. O modus operandi da
polícia brasileira é herdeiro da ditadura bem como as repressões ao direito de
livre manifestação.
Vale
ressaltar, em momento de desocupação da Aldeia Maracanã e de preparação do país
para o turismo esportivo, que uma das permanências é também na questão
indígena. Um dos casos discutidos durante o Tribunal Popular da Ditadura
organizado pela FEMEH em seu último Encontro Nacional, a questão indígena na
ditadura, evidenciou ações de extermínio em aldeias inteiras praticadas pelos
militares. O material recolhido pela executiva de curso foi encaminhado para a
CNV e entrou como campo de investigação dos pesquisadores. Esperamos que o
relatório final da Comissão, previsto para o primeiro semestre de 2014,
contemple os casos indígenas. Mas, imediata e principalmente, nos indigna a
situação social dos indígenas destituídos de seu terreno sagrado de maneira
brutal, desumana e policialesca nos episódios da última semana, bem como o
desrespeito pela história e cultura do nosso povo demonstrado na mesma.
Exigimos a reparação histórica, a memória, a verdade dos oprimidos, a justiça,
o fim do racismo ambiental.
Enquanto todas
essas práticas se perpetuarem livremente e os torturadores continuarem impunes,
todo e qualquer órgão memorial será infrutífero para a sociedade de conjunto.
Contra a criminalização dos que lutam hoje e os que resistiram no passado, em
memória dos que tombaram por uma sociedade justa e igualitária, reivindiquemos uma
história militante e construída na base dos movimentos sociais.