quinta-feira, 27 de março de 2014

O Golpe Militar-Capitalista

Há cinquenta anos um episódio lamentável mergulhou o Brasil no seu maior retrocesso político, social, e a partir de certa altura, econômico. O golpe civil-militar que vaporizou as nossas instituições republicanas em abril de 1964 ensejou uma ditadura militar que endereçava a condução dos assuntos de Estado à uma matilha de tecnocratas com o selo de aprovação antissocialista em benefício de uma minoria milionária interessada sempre no pior que o capitalismo tem a oferecer ao povo. A nossa ditadura militar teve algumas singularidades fascinantes e vergonhosas do ponto de vista institucional: tanto o golpe que a chocou do ovo da serpente como o regime que ela conduziu contaram com a ampla presença — e participação — de tudo que a sociedade civil nutria de menos democrático; ao mesmo tempo foram poucos os ditadores que durante o regime gozaram de poder absoluto sobre as forças nascidas da mesma Caixa de Pandora que lhes colocara no poder.

 Os cinco generais-presidentes que encabeçaram o condomínio de interesses macabros por 21 anos só puderam manusear o cetro real na medida em que se movimentavam a favor dos mecanismos de sustentação do golpe: a domesticação da sociedade civil, a abordagem antipopular dos problemas nacionais, o anticomunismo extremista como instrumento de controle cultural, a militarização da crise social que avassala o País há séculos, e inversão dos papéis institucionais do Estado. Esses mecanismos se combinaram de acordo com a convergência de interesses conservadores e reacionários que produziram o consórcio do golpe. Domesticar a sociedade civil atendia à ideologia autoritária daqueles militares que esperavam uma paz social decretada de cima pra baixo para a correta administração do País, e também do empresariado que, num audacioso golpe para vencer a luta de classes, preferia ver militares usurpando o Direito para neutralizar agitadores sociais e trabalhadores conscientes do que aceitar a participação dos mesmos na condução dos destinos políticos.

A abordagem antipopular dos problemas nacionais brotava do preconceito de décadas que os militares brasileiros nutriam contra o comunismo, identificado como gatilho de qualquer proposta de poder popular, e também da tendência essencialmente antidemocrática de um empresariado que pode alegar gostar de democracia num banquete de sócios, mas sabe em seu âmago que a maneira mais fácil de obter lucros é prestando o mínimo de contas possível à população. E o Brasil, nessa ótica, é pouco mais do que uma máquina de fazer lucros.

O anticomunismo extremista como instrumento de controle social fazia as delícias de uma Igreja que associava comunismo com a subversão dos valores da família cristã, de uma corporação convencida de que qualquer ideia de vanguarda é produto do movimento comunista internacional, e de uma classe média moralista sem coragem de se opor às elites mais soberbas, porém, disposta a se consolar com o patético papel de vigilante dos bons costumes e de guarda pretoriana da mais retrógrada das morais cívicas. Feito do comunismo um rótulo capaz de abarcar tudo de culturalmente perigoso, verdadeiros tarados foram elevados às funções mais decisivas de produção intelectual e artística no País, sob o pretexto de que a voracidade destes era uma arma indispensável no combate à subversão.

A militarização da crise social que avassala o Brasil há séculos saciava aquela mínima porcentagem de milionários brasileiros temerosos da possibilidade da ralé se apropriar de qualquer medida de fatia do volumoso bolo da riqueza nacional, dos empresários estrangeiros localizados no Brasil que monopolizavam setores da economia, receosos de qualquer mudança de regras capaz de beneficiar a democracia em seu prejuízo, e daquela ascendente classe média que sonhava com a possibilidade de auxiliar as aves de rapina do capital estrangeiro a fincar suas bandeirinhas sobre nossa economia em troca de algumas migalhas. Nessa correlação de forças, botar o Exército para desmobilizar o povo faminto e explorado sairia sempre mais barato que negociar com o mais pelego dos representantes das classes trabalhadoras.

A inversão dos papéis institucionais do Estado ia ao encontro das preocupações do Departamento de Estado norte-americano, dos pudores da classe média anticomunista e das necessidades práticas dos lobistas do poder na nova ordem. Os verdadeiros motivos de combate ao comunismo sempre foram egoístas para a coalizão conservadora, mas para ampliar o apelo de manobra tão delicada era necessário lançar mão da retórica pró-democrática que compensava em histeria o que lhe faltava em propriedade e profundidade. Assim, para conservar a fachada de regime democrático, o Congresso brasileiro não foi fechado, a não ser em ocasiões específicas — mas foi plenamente esvaziado de suas funções públicas (praticamente incentivado, portanto, a inventar funções privadas).

O multipartidarismo não deu lugar ao fascismo monopartidário, mas a um bipartidarismo cínico que reservava ao situacionista os louros da vitória e ao oposicionista os ônus das crises. Isso maquiou a real situação de criminalização da diversidade política da nação e facilitou o desencanto popular com os instrumentos partidários. O Judiciário manteve algumas prerrogativas de independência, mas elas foram tão vagas e tão inúteis no destino da sociedade que esse poder acabou se encastelando cada vez mais, tornando o acesso à Justiça no Brasil um dos mais bloqueados do mundo industrial. Tudo era permitido à sociedade civil e aos poderes da República contanto que beneficiasse os que estavam no poder, e tão logo que eles se mostrassem incômodos, como na vitória contra a cassação de Márcio Moreira Alves em 1968, ou na espetacular vitória do MDB nas eleições de 1974, em breve eram esvaziados de sentido, importância e possibilidades.

 A ditadura aniquilou tantas instituições que não conseguiu respeitar nem as que ela própria criou — isso ficou visível em 1969, quando o próprio processo de escolha do Presidente que o regime criou foi atropelado e a própria Constituição criada havia menos de dois anos foi quase inteiramente revogada. Essa sórdida combinação de interesses diabólicos com suas aspirações particulares e que necessitava de uma horrível combinação química para atingir seus objetivos se explica pela própria formulação do golpe. Ele nasceu de várias cabeças e foi desempenhado a várias mãos. O IPES, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, teve a função de reunir os militares golpistas que desde 1954 perseguiam o pálido centro-esquerdismo de João Goulart com o empresariado que não poderia se lançar sozinho contra a República num golpe de mão. A intenção do IPES era assumir onde o IBAD havia parado. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática fora criado em 1959 para arrecadar fundos estrangeiros e nacionais — mas sempre clandestinos — para derrotar a esquerda nas urnas, mas o seu sucesso limitado em 1962 levou seus sócios a buscarem vitórias no tapetão, reunindo empresários da mídia, golpistas profissionais, agentes estrangeiros, e militares reacionários. O fim de março e começo de abril de 1964 registrou o maior nível de unidade da direita brasileira em qualquer ponto em sua História — talvez comparável apenas a outubro e novembro de 1989. O resultado foi particularmente triunfante porque não só não se registrou unidade similar das esquerdas, como elas estavam particularmente desagregadas em virtude dos 464 anos de relativa semiclandestinidade que lhe espremeram o bom senso e a capacidade para trabalhos coletivos.

A ditadura só foi embora após reverter a esquerda a estágio similar de precariedade política e até mesmo teórica. Não conquistamos muita coisa desde então, a não ser a possibilidade de superarmos essas limitações históricas com um acúmulo considerável de experiência que pode nos levar a um estágio mais avançado na luta de classes, conquanto nos mantivermos sagazes e maduros, a fim de que nossa diversidade não se degenere em divisionismo por conta das nossas inseguranças e pequenas questões particulares.

Mas, mesmo a ditadura em si tendo um fim, até hoje permanecem muitos resquícios da mesma na política e no estado brasileiro. Além disso, paira uma sombra – ou uma censura – sob o período nos capítulos da história brasileira, pois não há condenação dos criminosos da época e mesmo a verdade sobre o período ainda é revelada a conta-gotas, com a comissão da verdade só tendo sido instituída recentemente e ainda com muitas limitações.

Ainda há muita luta a se fazer para combater as conseqüências e resquícios da ditadura militar, para eliminar este fantasma ainda bastante presente que até hoje cega e censura a consciência da classe trabalhadora.

É preciso abrir todos os arquivos e desnudar o que ocorreu naquele período. Porém, é preciso também punir exemplarmente todos os políticos, policiais, militares, empresários e civis que contribuíram com o regime e seus crimes.

A polícia militarizada, autoritária, racista, machista, homofóbica, repressora e assassina que temos hoje é também uma herança maldita deste período. A luta que cresce hoje pela desmilitarização da polícia é de extrema importância e tem o apoio do Coletivo Construção.

É essencial reivindicarmos a democratização da mídia e quebrar esse modelo oligopolizados que nasce do monopólio da globo, que foi criada por investimento de uma empresa americana visando edificar um aparelho de dominação ideológica e apoio ao governo anticomunista que se instalava. Neste sentido é crucial que defendamos a luta pela democratização da mídia, quebrando com a dominação ideológica imposta pela burguesia e dando aos trabalhadores acesso aos veículos de comunicação de massa.


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