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domingo, 31 de março de 2013

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: LIMITES E CONTRADIÇÕES


Por Priscila Manfrinati, estudante de História da USP, militante do CAHIS USP, FEMEH e COLETIVO CONSTRUÇÃO.

Se, na data de hoje, militares e saudosistas comemoram um golpe de estado criminoso, cujos agentes assassinaram, torturaram e exilaram centenas de militantes no país, para nós esse é um dia de memória e resistência. Memória porque a luta dos que tombaram lutando por uma sociedade justa e igualitária é também a nossa luta, e porque o legado dos nossos militantes perdidos contribui para a urgência das nossas tarefas históricas. Resistência porque os resquícios do regime militar brasileiro são sentidos até hoje nessa falsa democracia em que vivemos, onde movimentos sociais são criminalizados, a polícia agride e mata, os meios de comunicação são monopolizados.
Durante os anos subsequentes à abertura democrática, o país viveu um profundo silêncio sobre o período ditatorial por parte dos governos. Com a aplicação da Lei da Anistia, torturadores e torturados foram igualados juridicamente, não houve conformação de discurso oficial do Estado, os arquivos do DEOPS e demais aparelhos burocráticos permaneceram lacrados. O pouco repercutido sobre o período se deve às contribuições de sobreviventes, produções cinematográficas, obras literárias e demais meios civis de circulação.
A reivindicação do acesso aos arquivos da ditadura foi campanha permanente da FEMEH – Federação do Movimento Estudantil de História – desde sua fundação em 1987 e significava, de fundo, uma luta pelo direito à verdade. Houve um avanço na última década no acesso aos arquivos, que vêm sendo gradativamente disponibilizados pelo país afora e em 2012, a campanha mudou seu nome (e abrangência histórica e política) para “Pela memória, verdade e justiça, contra a criminalização dos movimentos sociais”.
No fim do primeiro ano do governo Dilma foi criada a Comissão Nacional da Verdade. Esse órgão, sem autonomia financeira e submetido ao gabinete da presidência, é composto por membros escolhidos diretamente pela presidente e tem a função de investigar os crimes cometidos pelo Estado entre 1946 e 1988, período que compreende a ditadura civil-militar brasileira. Entendida por muitos como um compromisso da presidenta com o seu passado militante e, mais além, com a pauta dos direitos humanos no Brasil, a Comissão tem inúmeras problemáticas e deve ser analisada dentro de um complexo jogo de interesses.
Um dos objetivos principais do governo Lula no âmbito das relações internacionais foi a conquista de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. No entanto, as Cortes Interamericanas vetaram a participação brasileira no órgão.
Há mais de 20 anos depois do que chamamos de 'abertura democrática', a história da ditadura civil-militar ainda está diluída no discurso de diversos setores da sociedade que têm leituras divergentes sobre o período e o impacto do regime no Estado democrático de direito. Ainda sem discurso oficial, o Estado brasileiro precisaria revirar os esquecidos arquivos do período da ditadura e, por exigência das Cortes, apresentar uma versão consolidada sobre o período perante a sociedade. A criação da Comissão veio, então, no sentido de adequar o Estado brasileiro à concepção de Estado imposta pelas Cortes, que possuem políticas rígidas contra modelos totalitários de governo.
De caráter estatal e não popular, a Comissão tem graves limitações. Sua composição é alheia à militância histórica dos movimentos sociais em torno das causas dos presos e torturados pelo regime: não aglutina, para além da formalidade, as intervenções da população em torno desse assunto polêmico. Para além disso, tem caráter explícito e declarado de “reconciliação nacional”. O projeto de lei de sua criação foi formatado em comum acordo com os chefes das Forças Armadas e, não só não pretende revisar a Lei da Anistia e punir os torturadores, como não tange o caráter civil da ditadura militar, deixando imaculadas tantas empresas e indústrias - relegando suas contribuições ativas ao regime militar ao esquecimento.
“Pela memória, verdade e justiça” - A Comissão abrange a memória de alguns, relativiza a verdade e simplesmente se abstém da justiça. Tamanha diplomacia com os setores militares abre margem para o fortalecimento e ameaça de insubordinação, tal como já ocorrido no governo Lula. A articulação de um movimento de criação de uma “comissão paralela” no Clube Naval sem medidas punitivas por parte do Ministério da Defesa comprova uma docilidade perigosa do governo com as Forças Armadas. E vai na contramão das reivindicações sociais em torno do assunto.
Esses limites todos não são inerentes à condição institucional da Comissão. Órgãos à imagem e semelhança da CNV foram criados em outros países sul-americanos e, como ocorrido na Argentina e no Uruguai, chegaram a condenar à prisão perpétua torturadores já bem idosos. Na semana passada, foram 12 as condenações argentinas em processos sobre os crimes do regime. É extremamente simbólico que, no mesmo país, a antiga ESMA – Escola Superior da Mecânica Armada –, principal centro militar da repressão argentina, foi transformada em um enorme complexo cultural dedicado à memória, enquanto a paulistana Rua Tutóia continua a abrigar uma delegacia de polícia. A superficialidade das iniciativas governistas nessas questões expõe até onde se dá o comprometimento do governo Dilma com a causa histórica dos direitos humanos e os direitos democráticos no Brasil.
Se, por um lado, os governistas e os iludidos comemoram o ato de restituição simbólica dos mandatos dos deputados e senadores cassados à época da ditadura e a mudança do obituário de Herzog por outro ainda inadequado (visto que morte em decorrência de tortura não é o mesmo que morte em decorrência de maus tratos), os torturadores e colaboradores da ditadura permanecem livres e vivem normalmente. A não intervenção nos conflitos no campo, a ação violenta da Marinha no Quilombo Rio dos Macacos, as repressões aos trabalhadores em greve nas obras do PAC e aos estudantes em mobilização nacional por melhores condições universitárias, e a promulgação da Lei Geral da Copa mostram que o estado de exceção não foi superado e não é exclusivo do passado. O modus operandi da polícia brasileira é herdeiro da ditadura bem como as repressões ao direito de livre manifestação.
Vale ressaltar, em momento de desocupação da Aldeia Maracanã e de preparação do país para o turismo esportivo, que uma das permanências é também na questão indígena. Um dos casos discutidos durante o Tribunal Popular da Ditadura organizado pela FEMEH em seu último Encontro Nacional, a questão indígena na ditadura, evidenciou ações de extermínio em aldeias inteiras praticadas pelos militares. O material recolhido pela executiva de curso foi encaminhado para a CNV e entrou como campo de investigação dos pesquisadores. Esperamos que o relatório final da Comissão, previsto para o primeiro semestre de 2014, contemple os casos indígenas. Mas, imediata e principalmente, nos indigna a situação social dos indígenas destituídos de seu terreno sagrado de maneira brutal, desumana e policialesca nos episódios da última semana, bem como o desrespeito pela história e cultura do nosso povo demonstrado na mesma. Exigimos a reparação histórica, a memória, a verdade dos oprimidos, a justiça, o fim do racismo ambiental.
Enquanto todas essas práticas se perpetuarem livremente e os torturadores continuarem impunes, todo e qualquer órgão memorial será infrutífero para a sociedade de conjunto. Contra a criminalização dos que lutam hoje e os que resistiram no passado, em memória dos que tombaram por uma sociedade justa e igualitária, reivindiquemos uma história militante e construída na base dos movimentos sociais.


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